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Nada é mais difícil que pensar


José Rogério Oliveira
No documentário “Uma Família Ilustre” (2015) a filósofa alemã Hannah Arendt, ecoando a frase de Blaise Pascal (1623-1662) acima transcrita, nos diz muito sobre o Pastor Cláudio Guerra, ex-delegado da Policia Civil responsável por incinerar militantes contrários à ditadura. Em dezoito minutos ele revela ao professor Eduardo Passos, psicólogo clínico que trabalha com direitos humanos, os inúmeros horrores perpetrados contra os militantes do PCB no inicio dos anos de 1970.
Com uma direção sóbria, sem música descaradamente emotiva ou de métodos intimidadores, Beth Formaggini vai tecendo cenas de modo quase imparcial, até que joga, literalmente, na cara de Cláudio Guerra imagens de suas vitimas. Porém, o ex-delegado guiado por Passos não se constrange em revelar seus crimes e sua visão dos fatos (“era o meu trabalho”) e o novo trajeto que a sua vida tomou (“tem gente que não acredita na minha mudança”).
A crueza com que Guerra relata seus crimes sem dúvida o coloca no centro de nossas atenções onde ficamos perplexos, mas ávidos por saber mais sobre o insondável mistério da crueldade humana, o que termina por mitigar a história da mulher de Itair José Veloso, ex-militante incinerado por Guerra.
De Bíblia em punho e com uma consciência limpa permitida pela complacência de seu novo métier, Guerra, como o Deus tirânico do Velho Testamento, nos revela sobre o estranho fenômeno dos desaparecidos políticos durante a “longa noite” da ditadura civil, militar e econômica. Seus métodos de incineração não eram novidade alguma, posto serem amplamente utilizados na Alemanha nazista. Tampouco sua competência profissional – Adolf Eichmann que o diga.
De fato, nada de novo é dito durante boa parte do diálogo travado entre Guerra e Passos: cumprir e executar ordens da melhor forma possível. O trabalho exigido, no caso, dar sumiço aos corpos de militantes comunistas num país de governo autoritário não difere muito do que disse Arendt sobre Eichmann. Nesses termos, Guerra disse a verdade. Ele não é um monstro, mas um homem vulgar, incapaz de pensar por si mesmo.
Contudo, a tese arendtiniana, sobre a banalização do Mal não pode ser aqui utilizada, sobre o risco da História se repetir como farsa. Ao guiar esse diálogo, Passos desvela não um competente burocrata em alguém ignorante, mas um homem inteiramente interessado em manter seus mesquinhos privilégios (um Opala, por exemplo) e, o mais assustador, manter o poder ainda que este fosse estruturado pelo horror que ele tão glacial e habilmente utiliza.
* Extraído do site Oficina de Crítica do crítico André Dib.