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A dor e a dignidade (Arábia)




Por Odília Nunes



Vale das Juremas – Sertão do Pajeú, 28 de maio de 2018

Era dia 26 de Maio deste 2018. Último dia da 4º Mostra Pajeú de Cinema.

Cheguei ao Cine São José sem ter lido a programação. E por viver na roça, neste Sertão do Pajeú Pernambucano, não tenho tido muito acesso a notícias sobre o que se tem de novo e bonito no cinema nacional, do qual tenho certo distanciamento por ser sempre tão insensível ao que vi nele até hoje. Começo este escrito assim para dizer que não tinha, ainda, ouvido sequer falar de Arábia, obra de Affonso Uchôa e João Dumans que sinto necessidade de dizer: “Obra que é, além destes dois diretores do potente Aristides de Sousa, ator que protagoniza essa poesia.”

E eu, enquanto simples brasileira, operária do teatro, atriz e palhaça, me vejo hoje, dois dias depois, ainda deslumbradamente emocionada com o que vi naquela sala de cinema neste pedaço de Brasil onde o cinema não chega com facilidade. Aqui agradeço a toda equipe da mostra por proporcionar tamanho acontecimento! E sinto não ter estado ali acompanhada pelos meus irmãos e alguns amigos trabalhadores que vi no Cristiano (personagem de Arábia)! Sim, esse filme tem de chegar aos brasileiros! Arábia tem de ser visto!

O filme é, para mim, de uma quase melancolia. A forma que os personagens nos vão sendo apresentados, e até nos momentos de “festa”, carrega um ar de tristeza pairando no ar. Como se a tristeza fosse a maneira de fazer andar o filme. O que me fazia sentir a alegria de cada ser ou ambiente que me aparecia. Como se estivesse a todo instante me apresentando este sentimento que tanto tememos, a tristeza, mas que nada mais é do que o outro lado da alegria. E inconscientemente eu fui ao longo do filme construindo uma certeza de que mesmo na dificuldade, na solidão, no abandono, na morte, no medo, a tristeza vem dizer que existe alegria, mas que ela, a tristeza, é tão potente quanto seu outro lado e que não podemos fingir ou fugir dela.

Por mais que eu me apegasse a cada ser que aparecia... Como no início, com aquela cena maravilhosa do André pedalando que de cara me fez dizer: “Uau. Quero sair daqui pedalando, sentindo este vento nos meus cabelos!” e aí, quando estamos ali, grudados em André acreditando que adentraríamos na história dele que cuida de seu irmão menor, já comovida pela situação do irmão ter algo como bronquite asmática, vivendo ao lado de uma fábrica poluente, o filme nos revira de cabeça pra baixo. André nada mais era do que a figura que encontraria o diário do Cristiano e nos apresentaria, para além da vida que vivemos do autor do diário, outras tantas que iriam se encontrar com ele durante alguns anos da sua jornada... Meu apego ligeiro a cada personagem me dizia a todo momento do quanto de história que passa na nossa história!

E que lindo ver tamanha poesia no cinema. Arábia conseguiu me fazer imaginar a história de cada coisa vivida por Cristiano, me levou junto com ele a cada cena. Eu queria saber mais das putas, dos amigos, do primo, da prisão, do atropelado, da Ana... Mas este meu querer não era maior que a escolha de acompanhar o Cristiano. Sim, o foco é ele. Igual na realidade. Muitos caminhos, mas só conseguimos andar em um de cada vez. E tudo bem. Porque Cristiano era como se fosse a representação de cada um de nós ou das outras criaturas que apareciam no filme.

O cara é preso e quando sai da prisão resolve protagonizar a própria vida. Quantas vezes fui, presa? Trancada em uma penitenciária, nunca. Mas quantas vezes fui presa na minha vida? Muitas. Assim como cada um de nós. Presos em sentimentos, dificuldades, dramas familiares, doenças, situações financeiras, presos em empregos que nos reprimem muito mais que as quatro paredes duma penitenciária! E Arábia me falou disso. Mas foi com tanta poesia que foi leve, mesmo diante de tanta tristeza.

Diante de tanta prisão, apesar de se saber querer livre, Cristiano não se corrompe. Sua dignidade segue livre. E aí eu sou feliz. Eu, espectadora completamente aberta e seguindo Cristiano por cada canto que ele percorre nessa ficção, vendo sua tristeza e cada vez mais sua solidão aumentar me fazia feliz ao saber que ele seguia sendo forte e bom. Mas o que é ser bom ou mal? Entenda o que quero dizer amigo, Cristiano feito outros milhões de brasileiros seguem, mesmo diante das prisões, dignos de alegria. Numa cena de conflito com um dos muitos patrões que teve, Cristiano segue de cabeça erguida, porém sem se submeter a injustiça, nem sequer aumenta o tom de sua voz, sem agressão ele só se liberta outra vez... E eu seguia ele sendo feliz. Acreditando na luz. Seguindo adiante. acreditando que agora daria certo! Viva. E sabe quando o filme me faz triste? Quando a leitura do André acaba. Fico sem respirar por alguns segundos. Na expectativa de meu companheiro me levar mais para frente... Mas ele já me deu tudo que podia. Agora é comigo. Seguir minhas memórias e viver fora da ficção de Arábia.

Arábia me lembra muito um romance da Maria Valéria Resende. Uma história que quando li desejei contar! O Voo da Guará Vermelha. Também tem um personagem peregrinando sua vida. Nos trazendo memórias de seres muito parecidos com a gente ou com alguém que conhecemos. Estimula nossa realidade, mas estimula com poesia, porque de realidade já basta a realidade. A arte vem aliviar, vem provocar a gente de que podemos ser além. A arte vem bulir com a realidade pra me mostrar a grandeza que é viver e polir diariamente a consciência do meu próprio valor. Cristiano segue comigo!



A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.

Uma reconstrução poética-sensível (Cine S. José)




Por Nayane Nayse



Há sempre a expectativa do novo. Surpresa. Gentil ou destrutiva.

A barreira invisível separa a projeção (em movimento) do espectador (sujeito dividido); o que fixa o olhar na tela ou fixa no vazio, enquanto a mente tenta prever o que virá.

O invisível também separa o passado do futuro. Separa o senso de apropriação do abandono. E com mérito.

Um filme de apropriação.

Pela lógica, foi produzido e situado num espaço-tempo. Mas digo que a apropriação estava sendo feita, ainda e também, enquanto assistíamos ao filme pela primeira vez, e não apenas em sua retomada oficial, em 1994.

Acompanhei a reconstrução, mesmo que visualmente, da nova temporada. Ouvi os passos, as vozes, gritos e lamentos daquele dia. Retirei árvores inteiras da terra fértil, que também faz crescer e fincar as raízes da magia, da inquietação, de quem hoje pisa no ambiente e de quem tem tempo para reinvenção. Eu tive o sol e sorriso forte na cara. Tive a pressa e a timidez da menina-criança que corre entre os escombros. E que bom ver crianças. Que bom que a luta se faz ao lado da inocência.

É preciso ser inocente para festejar. E festejar lutando é mais que forte.

Eu tomo como partida o começo da minha luta a continuidade dos que estiveram presentes naquele ano. De quem fez de pé, outra vez, o Cine São José.

A base do piso foi feita do suor companheiro-político. As divisões estruturais vieram da coragem. Paredes levantadas pela excitação. A tela posta como nos sonhos infantis.

E há o saudosismo ante as fotografias numa imensidão escura. O olhar, a palavra sedenta e orgulhosa. Esse escuro não traz medo. Acolhe. Progride.

José é nome forte. “São”.



A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.

No nono nono (O Processo)




Por José Alberto Júnior



Em abril de 2016, o país assistia ao processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff. Lembro daquele doloroso dia de domingo. Eu e minha companheira assistíamos catatônicos ao que era mostrado na televisão. Era o começo de uma tragédia que ecoa até os dias de hoje. Todo esse sentimento de luto e derrota senti novamente ao ver O Processo, de Maria Augusta Ramos, na 4ª Mostra Pajeú de Cinema.

A diretora retrata esse processo de impeachment com um olhar sensível à representação da mulher e às relações de gênero, que se mostram presentes na obra. Seja o plano de Dilma indo ao encontro das mulheres em frente ao Palácio do Planalto, seja o de Janaína Paschoal em uma conversa sobre a questão do aborto. As mulheres sempre em primeiro plano.

É importante ressaltar também que a diretora tentou documentar todo esse desenrolar, seus trâmites jurídicos, legais e políticos, ou seja, o que ocorria para além do reportado pela imprensa.

Maria Augusta deixa claro que o filme toma um lado. Ela aponta sua câmera de maneira distante para obter as encenações desse julgamento. Maria Augusta assim, começa a registrar nossa história contemporânea para além do ódio, das paixões e dos desatinos que tem tomado as narrativas até agora. A montagem é algo que impressiona: em certos momentos ela parece ser de um filme de faroeste – os embates de Dilma com Cássio Cunha Lima são mostrados de maneira absurda. É importante ressaltar também que a equipe de filmagem tentou captar cenas das reuniões dos ditos da direita, pemedebistas, psdebistas e Janaína Paschoal, mas estes não permitiram que a equipe os acompanhassem. Uma das razões para a ausência de cenas do “outro lado”.

O Processo nos faz (re)ver todo esse luto. Impossível não perceber a operação de uma grande injustiça, de uma farsa. Temos aqui um dos maiores documentos históricos da década. Só não sei se é o melhor documentário nacional já feito ou a melhor adaptação da obra de Kafka.



A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.

Os perdidos rebentos: leitura comparativa entre “Rebento” e “A terceira margem do rio”




Por Fernanda Roberta



A princípio essa leitura comparativa entre o filme Rebento, de André Moraes, e o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, tem como objetivo refletir sobre as riquezas de significações das personagens “nosso pai” – no conto – e dessa mulher que é, no filme, Rosa, Ana e Maria, nos levando, assim, a nos aproximarmos do ser humano e sua busca constante em si mesmo. Nos diálogos de Bauman (2005, 2008) buscamos apresentar esse olhar das duas obras que refletem, a partir do leitor e do crítico, significações a respeito do ser humano representado nas duas personagens.

No ritmo das imagens cuidadosamente montadas, o espectador começa a seguir essa mulher, aproximando-se também de uma angústia que se intensifica lentamente com as descobertas e tentativas de uma cura ansiada pela personagem. Inicia-se com a cena de um rebento, o nascimento de uma criança que toma seu primeiro banho com delicadeza e cuidado, entregue aos braços da mulher que se mostra contida, sem a alegria que aparentemente se espera de uma mãe depois de um parto. A sequência é posta em duas cenas: primeiro, vemos o bebê sendo cuidado e, depois, sendo carregando pela mulher, que segue por uma trilha de trem, desviando-se de forma a seguir por outro caminho, dirigindo-se ao rio.

O conto A terceira margem do rio é narrado pelo filho, contador de sua própria experiência no passado, utilizando-se de memória e imaginação com os acontecimentos. O principal, a súbita ida do pai ao rio, nos apresenta múltiplos sentidos, um deles sendo o questionamento do próprio ser humano. O que nos leva à análise da figura do “Nosso Pai”, que relembra o pai de oração e também a espiritualidade. Assim, essas metáforas e os elementos que Rosa criou evidenciam, e também nos aproximam, do homem e das complexidades que ele enfrenta em sociedade e consigo mesmo. “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.” (Rosa, 1962, p.49)

Um crime e uma fuga sem explicações são os pontos de tensão que disparam a problemática das obras, tendo também como elemento comum o espaço do rio. Assim se inicia toda essa viagem, em um mundo dos sentimentos e do imaginário. A água e o rio trazem esses elementos de vida que em algumas religiões e mitos remetem à regeneração e à pureza, pois entendidos como um símbolo de vida e de renovação. Seguindo o pensamento de Bachelard (2001) podemos pensar que é dentro da canoa, na água, o lugar de repouso da alma do personagem que, diferentemente do filho, não sente a angústia nem o medo, demonstrando pertencer a um espaço atemporal que jorra vida. Já em Rebento, o espaço do rio é reposto como um lugar da morte, onde a criança é afogada pelos braços dessa mulher que, após essa cena, ganha um ritmo de ação e libertação. Ou seja, denota-se que nesse mesmo lugar de morte do rebento, nasceu a vida dessa mulher. E é a partir disso que ela vai seguir seu caminho, a princípio em direção a uma casa – onde ascende o fogo, faz café e compra pão –, mas de repente foge daquele lugar – parece perdida.

Nas próximas cenas a mulher vai se identificando como Maria, às vezes se aceitando como Rosa quando a mãe assim lhe chama, ou como Ana em outro contexto. Afinal, quem é essa mulher? Angustia-se o observador pelo sentimento que atravessa a personagem ao longo das cenas, às vezes ferida e muitas confusa, buscando na mãe abrigo e no pai o retorno de um lar feliz. A cena com a mãe nos mostra o sofrimento, a agressão, o carinho e a loucura. Ali não parece ser um lar seguro. Maria/Rosa/Ana sai para o terreiro pegar um fruto desse lar, uma simples melancia que irá carregar como bebê no decorrer da sua história.

Veio uma chuva que mostrou o choro da mulher, explicando a angústia, sentimento encrustrado na personagem. Em A terceira margem do rio, angústia é sentimento imerso naquele que ficou – o filho, que aguarda o retorno do pai. Será a mesma angústia de ambas personagens, a angústia de um “rebento” perdido, em busca de um elo paterno?

No longa-metragem, a mulher, antes do encontro com o pai, passa pelo canavial em chamas, também denotando que esse lar não lhe dará segurança ou trará a esperança de união da família, mesmo portando em seus braços a melancia, fruto da casa e da família plantado pelo pai. E essa figura paterna nos mostra a desilusão, a aceitação da morte e a solidão. No momento em que a mulher caminha, dessa vez para ir a seu próprio lar, relembra a fala de uma criança que diz: debaixo da terra tem um coração. Ela inclina-se rumo ao chão da terra e ouve o que lhe faz sorrir: um som de vida do coração da terra a faz viver.

O “rebento perdido” e o “filho do pai-no-rio”, os personagens da mulher em Rebento e do filho no conto de Rosa, revelam a angústia daqueles que anseiam pela identidade. Baumam fala que

as pessoas em busca da identidade se veem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de alcançar o impossível: essa expressão genérica, como se sabe, tarefas que não podem ser realizadas no tempo real, mas que serão presumivelmente realizadas na plenitude do tempo – na infinitude. (2005, p. 17)

No conto, alcançar o impossível ocorre no mergulho, “rio abaixo, rio a fora, rio adentro – o rio”; no filme, é na terra e nas batidas do coração. Ambos nos fala de nós, humanos, desejantes, em construção de uma identidade, perdidos rebentos e aprendizes da vida.


Referências

ROSA, J. G. Primeiras estórias. 37 ed. São Paulo: Nova fronteira, 1962.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
BACHELARD, Gastón. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.

Um documentário Inception (Cine S. José)




Por José Alberto Júnior



Durante muitos anos minha cinefilia foi regada a filmes na televisão, locadoras de VHS e, posteriormente, o DVD e os sistemas de streaming. Demorei 20 anos para conhecer uma sala de cinema – de shopping, evidentemente, mas que naquele momento era um evento único para mim. Anos mais tarde fui a um dos cinemas mais lindos que conheço, o São Luiz, no Recife. Sensações mistas, euforia, alegria, enfim, um momento que levarei para sempre.

Mas ontem, no início da 4ª Mostra Pajeú de Cinema, aqui em Afogados da Ingazeira, o documentário de abertura me fez imergir na história do Cine São José. Me fez mergulhar não só nas memórias expostas na tela, mas também nas minhas próprias: onde eu estava enquanto o cinema da cidade ainda funcionava regularmente? Por que eu nunca soube desse cinema antes? São coisas que sempre vou me perguntar.

E William Tenório, diretor de Cine S. José, faz questão de dizer que esse espaço que o filme – e que o cinema assistia ontem, quase num efeito Inception – é uma resistência. Não só pelas falas dos entrevistados que assistiam a si mesmos na tela, mas também pela narrativa do filme. As fotografias da época da reconstrução nos anos 1990, aliadas ao desenho do som, deram um efeito de “cenas filmadas” às imagens de arquivo apresentadas ao espectador. O trabalho de som ressalta os ruídos e burburinhos que vem das ruas da cidade, uma realidade para quem vai ao Cine São José. Os recursos formais do curta nos aproximam de um realismo que vivemos e que, inclusive, foi sentido na sessão.

A direção mantém a câmera por quase todo o filme em planos fixos, apenas deixando que o espectador explore o espaço do cinema através das fotos e dos depoimentos. Aúnica cena em que não se utiliza planos fixos – no início do curta, quando um projecionista prepara um filme em 35mm para ser exibido – carrega uma sutileza simbólica, uma homenagem ao cinema clássico nos tempos digitais. Com isso, temos a impressão de que o próprio cinema assistisse a obra.

Cine S. José é um documento vivo para a população de Afogados da Ingazeira e do Sertão do Pajeú, uma declaração de amor para as pessoas que reergueram, mantiveram e ainda lutam por esse cinema. Mais do que isso, é dizer que o cinema está vivo.



A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.

O que Rebento quis nos dizer?




Por Israel Lima



Rebento, longa de André Morais rodado no interior da Paraíba em 2017, nos apresenta um Nordeste diferente, sem a exploração de antigos problemas da região, bastante batidos nos meios de comunicação, como a fome e a seca. Na maior parte do tempo, a sensação de falta e aridez não está representada pelo cenário, mas sim pelas personagens.

Um filme forte que já se inicia com um ato brutal, mas que nos convida acompanhar a jornada de uma personagem misteriosa que muitas vezes é Ana, outras Maria ou Rosa. Ficamos estimulados a acompanhá-la nessa jornada e compreender suas motivações, mesmo que por curiosidade em saber a natureza de suas ações e o que aconteceu em seu passado.

A atmosfera de calmaria e delicadeza nos primeiros instantes do filme culmina num momento de grande tensão. Os planos fechados no banho da criança e na expressão facial da mãe, além da proposital falta de dialogo, ajudam na construção desse momento. Geralmente um banho em um recém-nascido deveria ser algo leve, mas intui-se, por meio da encenação, que alguma coisa não esta certa: o olhar da mãe é desolado e sem vida, como se estivesse incomodada com a chegada da criança. Em seguida testemunhamos o início da jornada: numa bifurcação entre duas direções – a dos trilhos do trem e o caminho de terra batida –, a câmera mostra a personagem optar pelo segundo, como se quisesse que a seguíssemos.

Uma das coisas mais admiráveis em Rebento são suas panorâmicas, onde se observa a personagem sempre ao centro de um sertão rico em exuberância, folhagens verdes e riachos correndo em um contraste claro com a imagem estereotipada de um sertão árido e aparentemente sem vida. O contraste de cores muitas vezes nos leva à percepção do estado emocional da personagem, nos deixando ora perdidos, ora complacentes com sua situação.

No encontro de Ana/Maria/Rosa com a mãe destaca-se uma outra cena de banho. Novamente, um incômodo: o seio da personagem derrama leite, como se chorasse a perda do filho que não mais está ali. Após uma situação confusa com a mãe, a personagem pega uma melancia no terreiro de casa e segue seu caminho, iniciando uma longa caminhada, na qual terá como companheira a fruta, cujo propósito revelar-se-á somente no final.

A personagem apresenta feridas em seu corpo que estão sempre sangrando, como se ocorridas há pouco. Sinto como se o filme quisesse dizer que “esse ser está com dor”, quase como um animal ferido que vaga com cautela pelas estradas. Sempre há uma ferida nova enquanto outra cicatriza.

O papel que cada homem desempenha na jornada dessa mulher é um elemento que chama a atenção do espectador, pois está no limiar entre uma relação de interesse e uma curiosidade incômoda. Seja o tratorista que oferece carona em seu veículo, seja o homem da bicicleta, que revela a mesma curiosidade, mas com um pouco mais de cautela, mostrando que guarda um luto pela mulher falecida, apesar de lhe contar sobre seus outros relacionamentos malsucedidos. Quem gera um interesse adicional é o menino que a segue em parte do caminho. Nele revela-se uma ingenuidade misturada com sabedoria empírica, causando, assim, um certo encanto na personagem, que também se surpreende com a revelação deste no fim de sua cena.

Em uma das paradas surge o convite para sentar-se à mesa do almoço com uma larga família matriarcal. O plano sequência revela vários aspectos de mulheres diferentes – com exceção do menino ainda de colo em cena, não há menções aos homens daquele grupo. Não que isso seja determinante na narrativa pois, mesmo entre esse grupo composto apenas por mulheres, há várias reproduções de um patriarcado misógino nada distante dos modelos tradicionais de famílias brasileiras. Envolvida em mais uma situação de desconforto, nossa personagem é diluída em meio aquelas outras tantas mulheres. Nos resta observar suas personalidades, desde a filha caçula – uma jovem mãe – até as outras filhas que insistem por companhia, porém se mostram pouco receptivas. Ao centro, a mãe, que faz jus à figura da nordestina forte e cheia de princípios morais, demonstrados por meio de sua autoridade e firmeza. Apesar da idade, sua posição na parte superior da mesa transmite uma impressão de austeridade, mais também de carinho.

Por fim, nossa personagem chega à casa do pai e lhe entrega a melancia. Trata-se de um homem rústico, de idade avançada e sem pretensões com a própria vida. Está desinteressado e não traz arrependimentos com o passado. O traço mórbido de suas palavras inquieta a personagem.

Diante dessa extensa jornada, pensamentos ficam em evidência: o personagem de Ana/Maria/Rosa é uma representação da mulher ou de uma humanidade já cansada e machucada, que perde seu fruto? Seria essa mulher o rebento que dá título ao filme e procura por um lugar seguro, mas que nunca o encontra, pois sua família não está mais unida e suas ações podem vir a ser interpretadas como uma última conexão entre seus pais? Num derradeiro momento em cena, a personagem deita-se no chão e ouve o coração da terra como uma criança que procura abrigo no colo da mãe. Talvez pela lembrança de seu filho ou essa seria o verdadeiro rebento?



A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.

Vidas sertanejas (Parquelândia)




Por José Alberto Júnior



Durante toda minha infância a chegada à minha cidade dos parques de diversão itinerantes me deixava maravilhado e animado. Brincava e andava naqueles brinquedos, era a maior alegria. Porém, depois de adulto, passamos a ver um lado que passava despercebido na infância: as pessoas que trabalham nesses parques e, literalmente, os trazem à vida. A atenção a esse aspecto deve também ter sido despertada na diretora Cecília da Fonte, diretora de Parquelândia, exibido mostra de longas-metragens da 4ª Mostra Pajeú de Cinema.

O documentário acompanha a vida de um grupo de pessoas que trabalham em um parque itinerante no sertão nordestino e todas as situações de trabalho ali envolvidas. Somos apresentados aos trabalhadores do parque pelo tom observacional de Cecília; a diretora pouco conversa com os personagens, nos deixando apenas ver todas aquelas situações mostradas pela câmera.

De fato, o filme faz uma denúncia sobre o modelo de trabalho que se é feito nesses parques. O dono do parque, por exemplo, fala que foi oprimido quando era apenas mais um trabalhador, mas agora oprime seus trabalhadores. Em determinada cena, ele chama Damião – um dos personagens observados pela diretora –, um dos trabalhadores do parque, de “neguinho”, em um tom de forte preconceito racial.

No entanto, a diretora se equivoca em outras partes do filme. A mão pesada de Cecília acaba por reproduzir planos estereotipados de como o nordeste era visto em filmes, telejornais na televisão aberta e na literatura. Os planos da família de João – outro personagem que a lente da diretora acompanha durante o filme –, ali parados em frente à casa, assim como o plano de João lavando suas roupas em uma pedra em beira de açude enquanto outras pessoas tomavam banho me fez lembrar de como essas imagens chegaram às áreas nobres do país e fizeram disso um estereótipo do nordeste.

Parquelândia é um filme que denuncia a perversidade do trabalho informal dos parques itinerantes, mas, ao mesmo tempo, reforça uma marginalização da imagem do sertanejo. Um material que poderia render um filme melhor, sem necessidades de repetições de signos arcaicos da vida sertaneja. Afinal, para que Brasil esse filme foi feito?



A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico Heitor Augusto.