{.}

O que se conta e o que se reconstroi


Thays Eduarda
Ao assistir o filme “Todas as cores da noite” fui ao fundo do poço, sufocada por cenas que trasbordam olhares. Não contive lágrimas, a dor, a tristeza e a infinita solidão, que assim como na personagem também habita em mim.
No filme de Pedro Severien essa jovem consegue comunicar-se principalmente pelo não dito, trazendo para situações do cotidiano as várias dimensões da violência. Pedro faz algo sensacional ao direcionar esse imaginário de violências históricas, passadas e permanentes. Embora as marcas físicas sumam do corpo, a mente não esquece o quanto sangrou.
A solidão, o isolamento e o vazio daquele apartamento o tornam uma zona de sufoco, uma bolha social na qual vive a personagem. Ao ver toda aquela censura e perturbação constante coloquei minha alma para fora inúmera vezes. Sangrei de dor com Iris, entrei em estado de perturbação, atá parece que era eu ali sendo violentada e censurada pelos outros e por si mesma.
O filme desconstrói e reconstrói esse desequilíbrio da personagem através de provocações feitas pela empregada, pela amiga, pelo homem morto e pela pior arma da existência humana, a dimensão psicológica.
Tudo isso acaba se tornando algo comum na sociedade, na imaginação, nas mentes. Embora esse universo seja retratado exclusivamente por personagens femininas isso não isenta o pudor, a opressão, o machismo, o medo, a censura causada pelo homem, que embora morto, vive dentro dela.
A cena do homem coberto, a plenitude do apartamento quase vazio e o passo a passo de Iris até ele, revelam o quanto ela tem medo de se aproximar. O quanto é aterrorizante a figura do homem ali exposto. E talvez, já que o filme nos deixa várias brechas, quem sabe ele não é o causador de quase todas as incertezas que levam a personagem a qual, tinha tudo para ser o que quisesse, mas se perdeu na própria imensidão.
A cena da amiga sumida dentro daquele saco, sendo sufocada pelo seu próprio sangue, foi muito forte também. Suspense e crueldade levam à loucura e mais uma vez eu estava ali, presa, amordaçada, sem voz e sem esperança de sobrevivência.
O filme ainda deixa uma inquietação: será que a amiga, assim como outras mulheres, teve ou não a chance de sair daquele ciclo violento para tentar reconstruir os cacos a partir do que foi destruído pela figura do homem? Não há como saber. Tudo é tão incerto, confuso e perturbante que por alguns momentos não há como raciocinar. Talvez esa seja a marca do diretor, que nos faz sair de si sem jamais conseguir voltar da mesma forma.
A distância entre personagens e câmera nos leva a mais um labirinto desesperante e sem saída, no qual corremos em busca de algo mas só encontramos vazios existenciais.
É notória a incapacidade reativa da personagem, que trasborda em dor, enquanto a fotografia dita o que o silêncio não consegue traduzir, revelando ainda mais incertezas, deixando lacunas entre real e imaginário, memória e loucura.
Apesar das inúmeras interrogações pude perceber, sentir e viver os monstros que alimentamos todos os dias. E que somos aquilo que se conta e que se reconstrói.
* Extraído do site Oficina de Crítica do crítico André Dib.