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A dor e a dignidade (Arábia)




Por Odília Nunes



Vale das Juremas – Sertão do Pajeú, 28 de maio de 2018

Era dia 26 de Maio deste 2018. Último dia da 4º Mostra Pajeú de Cinema.

Cheguei ao Cine São José sem ter lido a programação. E por viver na roça, neste Sertão do Pajeú Pernambucano, não tenho tido muito acesso a notícias sobre o que se tem de novo e bonito no cinema nacional, do qual tenho certo distanciamento por ser sempre tão insensível ao que vi nele até hoje. Começo este escrito assim para dizer que não tinha, ainda, ouvido sequer falar de Arábia, obra de Affonso Uchôa e João Dumans que sinto necessidade de dizer: “Obra que é, além destes dois diretores do potente Aristides de Sousa, ator que protagoniza essa poesia.”

E eu, enquanto simples brasileira, operária do teatro, atriz e palhaça, me vejo hoje, dois dias depois, ainda deslumbradamente emocionada com o que vi naquela sala de cinema neste pedaço de Brasil onde o cinema não chega com facilidade. Aqui agradeço a toda equipe da mostra por proporcionar tamanho acontecimento! E sinto não ter estado ali acompanhada pelos meus irmãos e alguns amigos trabalhadores que vi no Cristiano (personagem de Arábia)! Sim, esse filme tem de chegar aos brasileiros! Arábia tem de ser visto!

O filme é, para mim, de uma quase melancolia. A forma que os personagens nos vão sendo apresentados, e até nos momentos de “festa”, carrega um ar de tristeza pairando no ar. Como se a tristeza fosse a maneira de fazer andar o filme. O que me fazia sentir a alegria de cada ser ou ambiente que me aparecia. Como se estivesse a todo instante me apresentando este sentimento que tanto tememos, a tristeza, mas que nada mais é do que o outro lado da alegria. E inconscientemente eu fui ao longo do filme construindo uma certeza de que mesmo na dificuldade, na solidão, no abandono, na morte, no medo, a tristeza vem dizer que existe alegria, mas que ela, a tristeza, é tão potente quanto seu outro lado e que não podemos fingir ou fugir dela.

Por mais que eu me apegasse a cada ser que aparecia... Como no início, com aquela cena maravilhosa do André pedalando que de cara me fez dizer: “Uau. Quero sair daqui pedalando, sentindo este vento nos meus cabelos!” e aí, quando estamos ali, grudados em André acreditando que adentraríamos na história dele que cuida de seu irmão menor, já comovida pela situação do irmão ter algo como bronquite asmática, vivendo ao lado de uma fábrica poluente, o filme nos revira de cabeça pra baixo. André nada mais era do que a figura que encontraria o diário do Cristiano e nos apresentaria, para além da vida que vivemos do autor do diário, outras tantas que iriam se encontrar com ele durante alguns anos da sua jornada... Meu apego ligeiro a cada personagem me dizia a todo momento do quanto de história que passa na nossa história!

E que lindo ver tamanha poesia no cinema. Arábia conseguiu me fazer imaginar a história de cada coisa vivida por Cristiano, me levou junto com ele a cada cena. Eu queria saber mais das putas, dos amigos, do primo, da prisão, do atropelado, da Ana... Mas este meu querer não era maior que a escolha de acompanhar o Cristiano. Sim, o foco é ele. Igual na realidade. Muitos caminhos, mas só conseguimos andar em um de cada vez. E tudo bem. Porque Cristiano era como se fosse a representação de cada um de nós ou das outras criaturas que apareciam no filme.

O cara é preso e quando sai da prisão resolve protagonizar a própria vida. Quantas vezes fui, presa? Trancada em uma penitenciária, nunca. Mas quantas vezes fui presa na minha vida? Muitas. Assim como cada um de nós. Presos em sentimentos, dificuldades, dramas familiares, doenças, situações financeiras, presos em empregos que nos reprimem muito mais que as quatro paredes duma penitenciária! E Arábia me falou disso. Mas foi com tanta poesia que foi leve, mesmo diante de tanta tristeza.

Diante de tanta prisão, apesar de se saber querer livre, Cristiano não se corrompe. Sua dignidade segue livre. E aí eu sou feliz. Eu, espectadora completamente aberta e seguindo Cristiano por cada canto que ele percorre nessa ficção, vendo sua tristeza e cada vez mais sua solidão aumentar me fazia feliz ao saber que ele seguia sendo forte e bom. Mas o que é ser bom ou mal? Entenda o que quero dizer amigo, Cristiano feito outros milhões de brasileiros seguem, mesmo diante das prisões, dignos de alegria. Numa cena de conflito com um dos muitos patrões que teve, Cristiano segue de cabeça erguida, porém sem se submeter a injustiça, nem sequer aumenta o tom de sua voz, sem agressão ele só se liberta outra vez... E eu seguia ele sendo feliz. Acreditando na luz. Seguindo adiante. acreditando que agora daria certo! Viva. E sabe quando o filme me faz triste? Quando a leitura do André acaba. Fico sem respirar por alguns segundos. Na expectativa de meu companheiro me levar mais para frente... Mas ele já me deu tudo que podia. Agora é comigo. Seguir minhas memórias e viver fora da ficção de Arábia.

Arábia me lembra muito um romance da Maria Valéria Resende. Uma história que quando li desejei contar! O Voo da Guará Vermelha. Também tem um personagem peregrinando sua vida. Nos trazendo memórias de seres muito parecidos com a gente ou com alguém que conhecemos. Estimula nossa realidade, mas estimula com poesia, porque de realidade já basta a realidade. A arte vem aliviar, vem provocar a gente de que podemos ser além. A arte vem bulir com a realidade pra me mostrar a grandeza que é viver e polir diariamente a consciência do meu próprio valor. Cristiano segue comigo!



A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.