Por Israel Lima
Rebento, longa de André Morais rodado no interior da
Paraíba em 2017, nos apresenta um Nordeste diferente, sem a exploração de
antigos problemas da região, bastante batidos nos meios de comunicação, como a
fome e a seca. Na maior parte do tempo, a sensação de falta e aridez não está
representada pelo cenário, mas sim pelas personagens.
Um filme forte que já se inicia com um ato brutal, mas que nos convida acompanhar a jornada de uma personagem misteriosa que muitas vezes é Ana, outras Maria ou Rosa. Ficamos estimulados a acompanhá-la nessa jornada e compreender suas motivações, mesmo que por curiosidade em saber a natureza de suas ações e o que aconteceu em seu passado.
A atmosfera de calmaria e delicadeza nos primeiros instantes
do filme culmina num momento de grande tensão. Os planos fechados no banho da
criança e na expressão facial da mãe, além da proposital falta de dialogo,
ajudam na construção desse momento. Geralmente um banho em um recém-nascido deveria
ser algo leve, mas intui-se, por meio da encenação, que alguma coisa não esta
certa: o olhar da mãe é desolado e sem vida, como se estivesse incomodada com a
chegada da criança. Em seguida testemunhamos o início da jornada: numa
bifurcação entre duas direções – a dos trilhos do trem e o caminho de terra
batida –, a câmera mostra a personagem optar pelo segundo, como se quisesse que
a seguíssemos.
Uma das coisas mais admiráveis em Rebento são suas
panorâmicas, onde se observa a personagem sempre ao centro de um sertão rico em
exuberância, folhagens verdes e riachos correndo em um contraste claro com a
imagem estereotipada de um sertão árido e aparentemente sem vida. O contraste
de cores muitas vezes nos leva à percepção do estado emocional da personagem, nos
deixando ora perdidos, ora complacentes com sua situação.
No encontro de Ana/Maria/Rosa com a mãe destaca-se uma outra
cena de banho. Novamente, um incômodo: o seio da personagem derrama leite, como
se chorasse a perda do filho que não mais está ali. Após uma situação confusa
com a mãe, a personagem pega uma melancia no terreiro de casa e segue seu
caminho, iniciando uma longa caminhada, na qual terá como companheira a fruta,
cujo propósito revelar-se-á somente no final.
A personagem apresenta feridas em seu corpo que estão sempre
sangrando, como se ocorridas há pouco. Sinto como se o filme quisesse dizer que
“esse ser está com dor”, quase como um animal ferido que vaga com cautela pelas
estradas. Sempre há uma ferida nova enquanto outra cicatriza.
O papel que cada homem desempenha na jornada dessa mulher é
um elemento que chama a atenção do espectador, pois está no limiar entre uma
relação de interesse e uma curiosidade incômoda. Seja o tratorista que oferece
carona em seu veículo, seja o homem da bicicleta, que revela a mesma
curiosidade, mas com um pouco mais de cautela, mostrando que guarda um luto
pela mulher falecida, apesar de lhe contar sobre seus outros relacionamentos
malsucedidos. Quem gera um interesse adicional é o menino que a segue em parte
do caminho. Nele revela-se uma ingenuidade misturada com sabedoria empírica,
causando, assim, um certo encanto na personagem, que também se surpreende com a
revelação deste no fim de sua cena.
Em uma das paradas surge o convite para sentar-se à mesa do
almoço com uma larga família matriarcal. O plano sequência revela vários
aspectos de mulheres diferentes – com exceção do menino ainda de colo em cena,
não há menções aos homens daquele grupo. Não que isso seja determinante na
narrativa pois, mesmo entre esse grupo composto apenas por mulheres, há várias
reproduções de um patriarcado misógino nada distante dos modelos tradicionais
de famílias brasileiras. Envolvida em mais uma situação de desconforto, nossa
personagem é diluída em meio aquelas outras tantas mulheres. Nos resta observar
suas personalidades, desde a filha caçula – uma jovem mãe – até as outras
filhas que insistem por companhia, porém se mostram pouco receptivas. Ao
centro, a mãe, que faz jus à figura da nordestina forte e cheia de princípios morais,
demonstrados por meio de sua autoridade e firmeza. Apesar da idade, sua posição
na parte superior da mesa transmite uma impressão de austeridade, mais também
de carinho.
Por fim, nossa personagem chega à casa do pai e lhe entrega
a melancia. Trata-se de um homem rústico, de idade avançada e sem pretensões
com a própria vida. Está desinteressado e não traz arrependimentos com o
passado. O traço mórbido de suas palavras inquieta a personagem.
Diante dessa extensa jornada, pensamentos ficam em evidência:
o personagem de Ana/Maria/Rosa é uma representação da mulher ou de uma
humanidade já cansada e machucada, que perde seu fruto? Seria essa mulher o
rebento que dá título ao filme e procura por um lugar seguro, mas que nunca o
encontra, pois sua família não está mais unida e suas ações podem vir a ser
interpretadas como uma última conexão entre seus pais? Num derradeiro momento
em cena, a personagem deita-se no chão e ouve o coração da terra como uma
criança que procura abrigo no colo da mãe. Talvez pela lembrança de seu filho
ou essa seria o verdadeiro rebento?
A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.