Por Fernanda Roberta
A princípio essa leitura comparativa entre o filme Rebento,
de André Moraes, e o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa,
tem como objetivo refletir sobre as riquezas de significações das personagens
“nosso pai” – no conto – e dessa mulher que é, no filme, Rosa, Ana e Maria, nos
levando, assim, a nos aproximarmos do ser humano e sua busca constante em si
mesmo. Nos diálogos de Bauman (2005, 2008) buscamos apresentar esse olhar das
duas obras que refletem, a partir do leitor e do crítico, significações a
respeito do ser humano representado nas duas personagens.
No ritmo das imagens cuidadosamente montadas, o espectador
começa a seguir essa mulher, aproximando-se também de uma angústia que se
intensifica lentamente com as descobertas e tentativas de uma cura ansiada pela
personagem. Inicia-se com a cena de um rebento, o nascimento de uma criança que
toma seu primeiro banho com delicadeza e cuidado, entregue aos braços da mulher
que se mostra contida, sem a alegria que aparentemente se espera de uma mãe
depois de um parto. A sequência é posta em duas cenas: primeiro, vemos o bebê
sendo cuidado e, depois, sendo carregando pela mulher, que segue por uma trilha
de trem, desviando-se de forma a seguir por outro caminho, dirigindo-se ao rio.
O conto A terceira margem do rio é narrado pelo
filho, contador de sua própria experiência no passado, utilizando-se de memória
e imaginação com os acontecimentos. O principal, a súbita ida do pai ao rio,
nos apresenta múltiplos sentidos, um deles sendo o questionamento do próprio
ser humano. O que nos leva à análise da figura do “Nosso Pai”, que relembra o
pai de oração e também a espiritualidade. Assim, essas metáforas e os elementos
que Rosa criou evidenciam, e também nos aproximam, do homem e das complexidades
que ele enfrenta em sociedade e consigo mesmo. “Nosso pai não voltou. Ele não
tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles
espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar,
nunca mais.” (Rosa, 1962, p.49)
Um crime e uma fuga sem explicações são os pontos de tensão
que disparam a problemática das obras, tendo também como elemento comum o
espaço do rio. Assim se inicia toda essa viagem, em um mundo dos sentimentos e
do imaginário. A água e o rio trazem esses elementos de vida que em algumas
religiões e mitos remetem à regeneração e à pureza, pois entendidos como um
símbolo de vida e de renovação. Seguindo o pensamento de Bachelard (2001)
podemos pensar que é dentro da canoa, na água, o lugar de repouso da alma do
personagem que, diferentemente do filho, não sente a angústia nem o medo,
demonstrando pertencer a um espaço atemporal que jorra vida. Já em Rebento,
o espaço do rio é reposto como um lugar da morte, onde a criança é afogada
pelos braços dessa mulher que, após essa cena, ganha um ritmo de ação e
libertação. Ou seja, denota-se que nesse mesmo lugar de morte do rebento,
nasceu a vida dessa mulher. E é a partir disso que ela vai seguir seu caminho,
a princípio em direção a uma casa – onde ascende o fogo, faz café e compra pão
–, mas de repente foge daquele lugar – parece perdida.
Nas próximas cenas a mulher vai se identificando como Maria,
às vezes se aceitando como Rosa quando a mãe assim lhe chama, ou como Ana em
outro contexto. Afinal, quem é essa mulher? Angustia-se o observador pelo
sentimento que atravessa a personagem ao longo das cenas, às vezes ferida e
muitas confusa, buscando na mãe abrigo e no pai o retorno de um lar feliz. A
cena com a mãe nos mostra o sofrimento, a agressão, o carinho e a loucura. Ali
não parece ser um lar seguro. Maria/Rosa/Ana sai para o terreiro pegar um fruto
desse lar, uma simples melancia que irá carregar como bebê no decorrer da sua
história.
Veio uma chuva que mostrou o choro da mulher, explicando a
angústia, sentimento encrustrado na personagem. Em A terceira margem do rio,
angústia é sentimento imerso naquele que ficou – o filho, que aguarda o retorno
do pai. Será a mesma angústia de ambas personagens, a angústia de um “rebento”
perdido, em busca de um elo paterno?
No longa-metragem, a mulher, antes do encontro com o pai,
passa pelo canavial em chamas, também denotando que esse lar não lhe dará
segurança ou trará a esperança de união da família, mesmo portando em seus
braços a melancia, fruto da casa e da família plantado pelo pai. E essa figura
paterna nos mostra a desilusão, a aceitação da morte e a solidão. No momento em
que a mulher caminha, dessa vez para ir a seu próprio lar, relembra a fala de
uma criança que diz: debaixo da terra tem um coração. Ela inclina-se rumo ao
chão da terra e ouve o que lhe faz sorrir: um som de vida do coração da terra a
faz viver.
O “rebento perdido” e o “filho do pai-no-rio”, os
personagens da mulher em Rebento e do filho no conto de Rosa, revelam a
angústia daqueles que anseiam pela identidade. Baumam fala que
as pessoas em busca
da identidade se veem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de alcançar
o impossível: essa expressão genérica, como se sabe, tarefas que não podem ser
realizadas no tempo real, mas que serão presumivelmente realizadas na plenitude
do tempo – na infinitude. (2005, p. 17)
No conto, alcançar o impossível ocorre no mergulho, “rio
abaixo, rio a fora, rio adentro – o rio”; no filme, é na terra e nas batidas do
coração. Ambos nos fala de nós, humanos, desejantes, em construção de uma
identidade, perdidos rebentos e aprendizes da vida.
Referências
ROSA, J. G. Primeiras estórias. 37 ed. São Paulo: Nova
fronteira, 1962.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
BACHELARD, Gastón. A poética do devaneio. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
A Oficina de Crítica da 4ª MPC foi ministrada pelo crítico de cinema Heitor Augusto.